A Assembleia Geral da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais,
ANPOCS, reunida durante seu 39o Encontro Anual, em Caxambu, no dia 29 de outubro de 2015,
torna pública nossa profunda preocupação diante do grave risco de violação dos direitos das
mulheres, se o Projeto de Lei no. 5069/2013, aprovado em 21 de outubro passado pela Comissão
de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, vier a ser aprovado em Plenário e insta a
sociedade e os Parlamentares à reflexão.
1. O Projeto de Lei altera e restringe a abrangência do atendimento das mulheres vítimas de
violência sexual nos hospitais, tal como regulamentado pela Lei no 12.845 de 1 de agosto de 2013
que considera violência sexual , qualquer forma de atividade sexual não consentida. Desde 1940 o
aborto não é crime quando a gravidez resulta de estupro, e desde 1998 o atendimento em
hospitais públicos tem tido lugar (tímido ainda) no Sistema Único de Saúde. Hoje, a mulher que se
encontre grávida em decorrência de violência sexual, ao buscar o serviço de saúde precisa assinar três termos, o Consentimento Livre e Esclarecido, em que escolhe por manter ou não a gravidez, o
Termo de Responsabilidade, onde declara legítima expressão da verdade e o Termo de Relato
Circunstanciado, no qual detalha como a agressão ocorreu. O PL quer restringir a abrangência do
atendimento pela exigência da apresentação do boletim de ocorrência e do exame de corpo de
delito. Entra assim em contradição com o direito constitucionalmente tutelado – que a
criminalização do estupro protege – a dignidade e a liberdade sexual individual. Sabe-se pelos
estudos e pesquisas qualitativas e quantitativas que os crimes de violência sexual são os mais
subnotificados, pois grande parte desses crimes, quer sejam cometidos por desconhecidos ou por
conhecidos e familiares, colocam as vítimas diante do medo ou da vergonha, dificultando
extremamente sua denúncia. Sabe-se também da possibilidade de o exame de corpo de delito se
apresentar sem resultados claros quer pela demora da ida da mulher à delegacia, ao Instituto de
Medicina Legal (IML), ou ao hospital, quer pela precariedade dos recursos e técnicas de exame dos
vestígios.
A exigência do boletim de ocorrência e do exame de corpo de delito não são inócuas ou
burocráticas. São graves e restritivas. Todo ato, procedimento, ou informação sobre
procedimentos e práticas de interrupção de gravidez resultante de estupro que não tenha sido
denunciado à Polícia Civil e examinado (ou constatado) poderão e serão considerados crimes,
tanto para as mulheres quanto para os médicos e agentes de saúde. Há sub-repticiamente, mas de
forma contundente, uma alteração restritiva do que se entende por estupro, com impacto
negativo na interpretação e na sua literalidade – há alteração dos artigos 126, 127 e 128 do Código
Penal – do que se entende desde 1940 por aborto que não pode ser criminalizado: o aborto que se
segue à uma gravidez decorrente de estupro.
2. O projeto de lei altera as modalidades de atendimento das mulheres vítimas de violência sexual
nos hospitais, tal como regulamentado pela Lei no 12.845. Hoje, os hospitais públicos são
obrigados a oferecerem acolhimento, atendimento, informação, orientação, prevenção das
doenças sexualmente transmissíveis, prevenção da gravidez por medicamentos e oferta de
informações sobre os direitos legais e sobre os serviços de aborto legal para interrupção da
gravidez, se for o caso e a vontade da vítima. 1) O PL restringe o atendimento obrigatório à oferta
de medicamentos não abortivos para prevenção da gravidez . 2) O PL não inclui na modalidade de
atendimento a oferta de medicamentos abortivos no caso de gravidez decorrente de estupro,
embora não a proíba explicitamente no caso do estupro denunciado à polícia civil e com exame de
corpo de delito. 3) O PL interdita que a administração de medicamento ou procedimento
abortivo seja obrigatório para nenhuma instituição ou profissional de saúde: “Nenhum
profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”.
3. O Projeto de Lei criminaliza o anúncio de meio abortivo e o induzimento, instigação e auxílio à
prática de aborto, assim como a mera orientação ou instrução de como praticar o aborto, por
qualquer pessoa. Aumenta a pena se estas ações – que incluem orientação e informação –
forem fornecidas por médicos, farmacêuticos ou enfermeiros ou agentes de serviços públicos de
saúde, ressalvados os casos de grave risco de morte da mulher e dos casos de estupro no seu novo
e restrito entendimento. O que está considerado como Ética Médica, dar orientação e informação,
passa a ser crime. Viola-se a Ética Médica e o direito humano individual à informação e à vida.
4. O Projeto de Lei revoga a caracterização de contravenção penal com pena de multa atribuída
até então aos atos de “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”, e
os converte em crime com penas de um a três anos. Cumpre apontar que a anticoncepção de
emergência, definida medicamente como preventivo da fecundação, e não abortivo, é alvo de
disputa pelos movimentos contrários ao aborto, que o interpretam como se abortivo fosse. Assim,
corre-se o grave risco que o convencimento jurídico poderá basear-se em antagônicos
entendimentos.
Ao analisarmos a matéria, não podemos deixar de afirmar que o PL significa um enorme
retrocesso para os direitos à vida digna de mulheres e meninas. Serão submetidas à revitimização
pela violência institucional. Negar o atendimento dos casos de violência sexual e/ou abortamento
é omissão de socorro e criminalizar os (as) profissionais de saúde que prestam essa assistência ou
informações é, mais uma vez, colocar em risco a vida das mulheres brasileiras, como já afirmado
recentemente pela movimentação feminista. Ferem-se assim os direitos à dignidade, liberdade,
informação, saúde e integridade física e psíquica das mulheres. A aprovação do PL será a
imposição de valores conservadores e moralistas monocráticos que se contrapõem a uma
concepção de direitos humanos que admite a pluralidade, a diversidade e a autonomia individual.