Em sua fala, a professora Maria Aparecida de Moraes reflete sobre o fazer sociológico e aponta que sua Sociologia foi construída a partir de três marcadores: a roça, o barracão e o eito. Uma Sociologia, em suas palavras, “movida pela crença de que todos os tipos de pessoas pequenas, fazendo pequenos atos de pequenas maneiras, em pequenos lugares, mudaram o mundo. É uma sociologia que não está do lado dos vencedores, mas, do lado dos que foram levados ao fracasso (…) uma sociologia marcada pela utopia”. Leia a íntegra aqui
Discurso de Maria Aparecida Moraes, por ocasião do recebimento do Prêmio ANPOCS de excelência Acadêmica Antônio Flávio Pierucci em Sociologia, 2024.
Esta premiação é resultado de muitas parcerias e apoios de muitas pessoas, em nome das quais teço meus agradecimentos.
Inicialmente, cumprimento e agradeço a todos/as integrantes da atual Diretoria da ANPOCS na pessoa do seu presidente, prof. Dr. Adriano Codato, em nome de quem também agradeço a todos/as pelo reconhecimento do meu nome para receber esta honraria. À professora Mariana Chaguri, agradeço a gentileza e carinho durante as fases da comunicação desta premiação. Ao professor Valter Silvério, representante da área de sociologia no Comitê Acadêmico da ANPOCS, sou eternamente grata pelos ensinamentos e amizade.
Cumprimento meus colegas premiados, professores Russell Parry Scott e Tullo Vigevani.
Cumprimento e agradeço à minha colega e amiga de longa data, a professora Marilda Menezes, por suas palavras, pelo seu afeto e amizade e respeito em relação a minha pessoa e ao meu trabalho.
Agradeço a UNESP, minha instituição de origem, aos/as colegas e amigas e amigos e discentes do PPG/Sociologia da UFSCar. Agradeço a FAPESP, CNPq, CAPES, Fundunesp, Fundação Carlos Chagas, NEAD/MDA, pelo apoio institucional para o desenvolvimento de minhas pesquisas.
Meus eternos agradecimentos às memórias de mestres e mestras que exerceram influências decisivas ao longo de minha caminhada. À professora do primário, Emirena Figueiredo, que, em algum momento, me orientou para a descoberta de muitos mundos além da minha roça, por meio do prazer da leitura. À professora, Heleieth Saffioti, quem me ensinou o encantamento do ofício de ser socióloga. Ao professor, Pedro Calil Padis, então assistente do professor Paul Singer, que fora impedido pela repressão da ditadura militar de continuar ministrando suas aulas no curso de ciências sociais na UNESP em Araraquara. Alguns anos mais tarde, encontrei-me com o professor Pedro Calil Padis em Paris, também perseguido pela repressão, no momento em que ele era o diretor do IEDES (Paris 1) e me proporcionou as condições para eu realizar a pós-graduação. No IEDES, tive a oportunidade de cursar as disciplinas relacionadas à sociologia do desenvolvimento, ministradas por Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Bresser Pereira, todos eles, expurgados de suas funções acadêmicas no Brasil.
Agradeço aos meus colegas latino-americanos do Grupo de Trabajo do CLACSO, Trabajo agrario, desigualdades y ruralidades, pelos intercâmbios de reflexões teóricas em torno de nossa realidade.
Agradeço aos meus colegas do CA de Sociologia do CNPq, Céli Scalon e Rogério Proença pelo aprendizado e pela conduta ética.
Agradeço, especialmente, aos meus ex orientandos (as), que participaram de minhas pesquisas ao longo do tempo, na pessoa de Lúcio Vasconcellos de Verçoza, em nome de quem agradeço a todos e todas e, também, os/as integrantes do GT TRAMA (Terra, Trabalho, Migração e Memória da UFSCar e CNPq) e ao CETAS da UNESP/Presidente Prudente.
Meus agradecimentos ao Procurador Regional da República, dr. José Leônidas Bellem de Lima e à Procuradora Dra. Fátima Borghi, aos promotores da PRT 15 de Campinas, por partilharem de minhas convicções em torno da luta pelos direitos dos trabalhadores rurais.
Não poderia deixar de agradecer aos padres, freiras, leigos/as da Pastoral dos Migrantes, do Centro de Estudos Migratórios (SP) e da CPT, Comissão Pastoral da Terra, pelas ações em torno das lutas e resistências dos migrantes rurais e dos camponeses vítimas de violência em diversas regiões do país. Agradecimentos especiais às freiras da CPT na região dos cocais maranhenses, que percorrem caminhos perigosos no meio da mata, levando a multimistura, receitada pela Dra. Zilda Arns, visando combater a desnutrição das crianças camponesas.
Agradecimentos aos meus familiares, irmãos, irmãs, cunhada, sobrinhos, aos meus filhos, netos, genro, nora pelo afeto e apoio constantes. Ao meu marido, Elson, especialmente, agradeço pelo carinho e por ter me auxiliado a segurar o leme do barco durante muitas tempestades. Às memórias de meu pai e minha mãe, pessoas da roça, ágrafas, cuja sabedoria embasou os caminhos que fui trilhando ao longo do tempo, sou eternamente grata.
À memória de Antônio Flávio Pierucci, que intitula este Prêmio.
Antônio Flávio e eu fomos amigos na infância. Cursamos o primário no Grupo Escolar Cel. Joaquim da Cunha em Altinópolis. Seu pai, Sr. Alcindo Pierucci, era músico e maestro. Regia um grupo de músicos, que se reuniam no coreto da pequena cidade todos os finais de tarde aos domingos. Os sons dos instrumentos encantavam a todas as pessoas ali presentes, inclusive a nós, crianças, cujas brincadeiras pareciam adquirir novos coloridos. Antônio Flávio, assim que terminou o primário, seguiu uma trajetória diferente da minha. Voltamos a nos encontrar muito tempo depois, e, em muitas ocasiões, nos Encontros da ANPOCS. Receber esta premiação que leva seu nome, Antônio Flávio, é não apenas um privilégio, levando-se em conta sua trajetória acadêmica, porém, representa para mim uma espécie de retorno ao nosso passado e ao nosso ponto de partida. Partimos do mesmo lugar. E aqui, agora, voltamos a nos encontrar em planos distintos, porém próximos. Faço um esforço imaginativo para ouvir os sons dos instrumentos dos músicos no coreto de nossa terrinha, segundo suas palavras, e, continuar com nossas brincadeiras. Este foi o modo que encontrei para te agradecer e homenagear.
No tempo que me resta, vou relatar um pouquinho acerca da sociologia que eu faço, da sociologia consagrada como ofício, como crítica, como artesanato científico e também como esporte de combate, nas palavras de Bourdieu. Elenco, em seguida, alguns marcadores que foram definindo os contornos do meu fazer sociológico.
Primeiro marcador: Roça.
Qual o significado desta palavra? Homem da roça, roceiro, rude, arcaico, caipira, capiau, bruto, desqualificado e, assim por diante. Estereótipos.
Para mim, o significado é outro porque, primeiramente, faz parte de minha constituição enquanto ser social. Nasci na roça. No mundo rural. Pertenço à uma família de sitiantes do interior de São Paulo. Anos 1940. Esta marca impressa no corpo, na alma. Na cultura. Nos significados, significantes e visão de mundo.
Este marco primevo influenciou as minhas escolhas em termos de pesquisa. Pesquisar o mundo rural, trazer para o palco homens e mulheres invisibilizados, ofuscados, apagados da história foi algo que veio de dentro, ou seja, é algo componente de minha experiência, algo que faz parte de uma das dobras de minha história de vida.
Segundo marcador: Barracão.
Em 1985, estabeleci o primeiro contato com os camponeses do Vale do Jequitinhonha (MG), ocasião em que realizava uma pesquisa com trabalhadores rurais na região de Ribeirão Preto/SP, considerada a capital mundial do etanol, o coração do chamado setor sucroenergético. Era um domingo do mês de junho. Fazia muito frio. Após entrevistar alguns trabalhadores de uma grande fazenda, produtora de café, obtive a informação da existência de um barracão com mineiros, situado do outro lado de um córrego, em cujas cercanias localizava-se o haras do fazendeiro com cavalos premiados em concursos nacionais e internacionais. Até então, eu desconhecia a presença daqueles trabalhadores.
Ao chegar ao barracão, deparei-me com muitas mulheres, homens e crianças que estavam do lado de fora, aquecendo-se ao sol em razão do frio intenso. Passados alguns momentos de estranhamento mútuo e dúvidas, iniciamos a conversa. Perguntei-lhes sobre as razões de estarem ali, de onde provinham, o que faziam em suas terras e, assim por diante. Paulatinamente, o estranhamento foi se dissipando e fui percebendo com maior nitidez a realidade daquelas vidas diante de mim. Não gravei nenhuma conversa. Ouvi muitos relatos sobre o trabalho e, sobretudo, o sofrimento, por estarem longe de suas terras. Contudo, o registro em meu caderno de campo foi insuficiente para dar conta do indizível, do silêncio, das falas entrecortadas por soluços, dos olhares dirigidos a lugar nenhum, da miséria dos corpos, do encolhimento, da dor sentida pelos doentes e, mais ainda, da saudade da “terra da gente”, “do lugar da gente”. A impressão registrada era a de pessoas “exiladas”, fora de seus rincões, arrancadas de suas raízes. Soltas, sem lugar de pertencimento.
O barracão enfeixava um quadro de miséria humana. Sua arquitetura refletia o retrato da dominação, exploração, contrastante com a arquitetura do haras, do outro lado do córrego, com seus belíssimos cavalos aureolados em vários concursos. Nos cinco “quartos”, divididos por plásticos pretos, as sessenta pessoas ali estavam amontoadas, independentes do sexo, idade, estado civil e grau de parentesco. Os fogões à lenha – em número de oito – situavam-se em frente aos “quartos”, imprimindo ao ambiente, em virtude da fumaça, um aspecto lúgubre. Não havia água encanada nem energia elétrica. A higiene corporal era feita no córrego, apesar do frio.
Duas frases ouvidas foram registradas em meu caderno de campo, inúmeras vezes: “aqui não é o lugar da gente”; “aqui não é a terra da gente”. Ao sair do barracão, no final daquela manhã domingueira, fui acometida de muitas emoções; revolta diante da injustiça social experimentada por aquelas pessoas; impotência diante do fato presenciado.
A partir de então, formulei um projeto de pesquisa para conhecer “a terra daquela gente”, o Vale do Jequitinhonha, e entender por que estavam na “terra que não era daquela gente”.
De lá para cá, foram muitos outros projetos na terra que não é da gente, e na terra que é da gente. Acompanhando as trilhas dos migrantes, percorri outros sertões: os cocais maranhenses, onde conheci as quebradeiras de coco babaçu e suas lutas para evitar a destruição pela queima das palmeiras, cuja bandeira é o coco é de todos, o coco foi Deus quem fez. No sertão da Paraíba, juntamente com a professora Marilda Menezes, no Piauí, na Bahia, percorri caminhos, os chamados lugares de origem dos migrantes. Nesses lugares meu fazer sociológico foi sendo paulatinamente redefinido e ressignificado.
Terceiro marcador: Eito.
Palavra da escravidão: os escravos do eito, o eito é o lugar de extração da mais-valia, nos termos marxianos. Eito dos canaviais, eito dos cafezais e eito dos laranjais. Eito é o laboratório secreto da produção (Marx). Lugar de disciplina, lugar da formatação dos corpos/colônia. Lugar onde, segundo os dados apontados pela Pastoral dos Migrantes, 23 trabalhadores morreram por exaustão entre 2002-2005. Morreram com o podão (facão) nas mãos. Lugar onde as pessoas ficam borradas. O que é isso? É não aguentar, é cortar cana ajoelhadas porque não havia como suportarem as dores e cãibras na coluna, nos braços, nas mãos e até nas línguas. Lugar onde o chicote dos feitores recebe o nome de gancho. O que é isso? É ficar três dias sem trabalhar porque a meta estipulada em 10 toneladas de cana por dia não fora alcançada, ou seja, ficar impedido de trabalhar e, por consequência, sem receber o salário.
Lugar de assédios sexuais sofridos pelas mulheres, advindos de fiscais e feitores e, até mesmo, dos companheiros. Lugar onde se deixa o suor e os nervos ficam esgotados. Lugar onde o corpo se transforma em bagaço, tal como a cana. Lugar onde cana queimada e pessoas têm o mesmo destino: a moenda. Da cana é extraído o caldo. Dos corpos são extraídos a força, a energia, a dignidade.
O eito também é o lugar da rebeldia. Lugar onde há exatamente 40 anos atrás eclodiu o movimento de Guariba, ou Levante de Guariba, maior protesto de trabalhadores rurais até então registrado nas terras paulistas. Ali, uma mulher negra, Maria, levantou o podão e conclamou os companheiros à revolta. O eito é também o lugar da resistência miúda, traduzida de várias formas. O eito é o lugar onde a porteira também é arrombada, onde os fracos de repente se transformam em fortes.
Estes achados empíricos foram me remetendo ao diálogo crítico com as teorias. Empiria e teoria foram sendo entendidas não de forma separada, mas entrelaçada. Daí, a necessidade de dialogar com outros campos do saber, não perdendo de vista a historicidade do eito. O impensável e o intolerável só poderiam ser explicados pela história, pelo passado deste país, onde vigeram a colônia e o escravismo por quase quatro séculos. Do mesmo modo, a exploração de classe sozinha não respondia a todos os questionamentos. O entrelaçamento entre capitalismo, patriarcado e racismo foi a reflexão mais segura para não somente compreender, como também contribuir para transformar este mundo de injustiça social.
A sociologia que faço é a sociologia do sofrimento, forjada no coração da riqueza do agronegócio desse país. Conquanto, esta sociologia é movida pela crença, segundo a qual, todos os tipos de pessoas pequenas, fazendo pequenos atos de pequenas maneiras em pequenos lugares, mudaram o mundo. É uma sociologia que não está do lado dos vencedores, mas, do lado dos que foram levados ao fracasso. No entanto, lembrando as palavras de Darcy Ribeiro, posso dizer que não é uma sociologia do fracasso, pois eu detestaria estar do lado de quem venceu. Talvez, uma sociologia marcada pela utopia.
Muito obrigada.