Em sua fala, o professor Tullo Vigevani aponta que a “política é a negociação, é a possibilidade de resolver os problemas considerando as diferenças (…) As ciências humanas contribuem com o estudo das sociedades lançando mão de instrumentos científicos. Interpretações diferentes existem, mas partindo do conhecimento do que sejam as relações sociais. Nosso papel não é oferecer sempre soluções, mas construir cenários. A partir do conhecimento”. Leia a íntegra aqui

Discurso de Tullo Vigevani, por ocasião do recebimento do Prêmio ANPOCS de excelência Acadêmica Gildo Marçal Brandão em Ciência Política, 2024.

Prezados professores Adriano Codato e Mariana Chaguri, Professor Haroldo Ramanzini, aos demais membros da mesa, a todos, um agradecimento pela presença.

Quando há aproximadamente seis meses, em abril, a profa. Mariana Chaguri me enviou mensagens informando que a diretoria da ANPOCS havia indicado o meu nome para receber o Prêmio Gildo Marçal Brandão, hesitei em acreditar. Sem falsa modéstia, há outros colegas com méritos maiores. Apesar disso, passados alguns dias, finalmente agradeci e aceitei. A razão maior é saber que, talvez, seria a última oportunidade para este reconhecimento e uma ocasião para agradecer aos muitos, mais sêniores, e mais competentes do que eu, e mais jovens, que colaboram decisivamente para a docência, para a pesquisa, enfim, para o que parece explicar a razão deste Prêmio Gildo Marçal Brandão. Última oportunidade para mim, vista a inevitável decadência a que todos estamos sujeitos. Esta é uma ocasião relevante, que não se repete, para lembrar de forma suscinta algumas ideias.

Para sublinhar a ideia de merecimento, lembro, de forma não exaustiva, alguns colegas que tiveram a honra deste prêmio. Antes de mais nada, quem lhe dá o nome, lembro de Gildo Marçal Brandão, com quem tive o privilégio de trabalhar, sobretudo no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, o CEDEC, formador de importantes pesquisadores. Incorrendo no risco de falhas graves e esquecimentos, lembro que foram contemplados Fábio Wanderely Reis e Luiz Werneck Vianna, em 2013; Celina Souza em 2015; Charles Pessanha em 2019; Maria Regina Soares de Lima em 2022, nome de referência para todos nós para a consolidação da área de Relações Internacionais nos estudos acadêmicos; Evelina Dagnino no ano passado. A minha indicação premia também, creio, a área de Ciência Política, e dentro dela as Relações Internacionais.

Retomando argumentos abordados em entrevista concedida a Glenda Mezarobba em 2018, lembro que nasci na Itália em 1942. Pouco depois, por causa da perseguição nazista e fascista aos judeus da Itália, com meus pais tivemos a sorte conseguir fugir para a Suíça. Depois da guerra, meus pais decidiram vir para o Brasil, para onde haviam vindo os avós maternos. Lembro isso porque decorridos 80 anos, as causas que produziram as guerras, inclusive a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, com outras motivações, continuam atuais e presentes, renovando-se inclusive tragédias com infindáveis sofrimentos, até mesmo genocídios, como a ANPOCS tem discutido.

Lembremos a tragédia da Palestina, o massacre em Gaza, que nos últimos 12 meses, depois do atentado 7 de outubro de 2023, leva a um verdadeiro extermínio, a uma vingança sem horizontes, como a qualificam também intelectuais israelenses como Yuval Harari e Gershon Baskin. Wolfgang Streeck classifica esta guerra, que não se iniciou em 7 de outubro, mas tem raízes antigas, como complexo de Sansão, levado à frente pela extrema direita fundamentalista. Anna Foa sinaliza o risco de destruição moral. As questões não resolvidas são inúmeras e trágicas, como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, renascimento de racismos de vários tipos, entre eles o antisemitismo; outros massacres, como o do Sudão. A força do conservadorismo radical em escala universal sugere que as causas das guerras permanecem.

Atraído pelo trotskismo, aos 17 anos, depois de ser aprovado no vestibular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, no final de 1960, iniciei a militância política. Entre as camadas heterogêneas que compõe a minha formação, e que reivindico, esta também foi muito importante. Determinando em boa medida caminhos. A clandestinidade durante o regime militar, a prisão, estimularam o estudo e a pesquisa para poder compreender. Finalmente a saída forçada para o exterior, para Roma, onde retomei os estudos na Sapienza, agora no campo que a experiência e a reflexão intelectual encaminhavam, para a Ciência Política, sobretudo as relações internacionais.

Na Itália, onde fiquei até a Anistia, votada em 1979, estudei, trabalhei e pude ter uma vida intelectual significativa. O país fervilhava em meio a contradições, anos do ‘compromesso storico’, da violência política. Colaborei com a Fundação Lelio Basso e a Liga Internacional para os Direitos dos Povos, particularmente nas atividades do Tribunal Bertrand Russell II, que investigou as graves violações de direitos humanos então em curso, na América Latina. O trabalho cotidiano o desenvolvi no Istituto per le Relazioni tra l’Italia e i Paesi dell’Africa, America Latina ed Oriente Medio (IPALMO), que ampliou meus conhecimentos sobre as organizações internacionais e o fazer diplomático. Além da formação universitária, no Ipalmo e na Fundação Lelio Basso desenvolvi meus primeiros passos acadêmicos ‘strictu sensu’, inclusive em termos de publicações em journals de peso internacional. Com este lastro, sempre voltado aos problemas brasileiros, à medida que a vida intelectual e política no Brasil se restabelecia, retomei novas e velhas relações. Importante foi com o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), sobretudo com José Álvaro Moisés.

Ingressei na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 1987, aos 45 anos de idade. Encontrei lá professores de referência no campo das Relações Internacionais, Clodoaldo Bueno, Shiguenoli Miyamoto. Hoje, aposentado compulsoriamente desde 2012, contínuo na pós-graduação, no programa de Ciências Sociais da Faculdade. Colaborei para a fundação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) com Sebastião Velasco e Cruz, Reginaldo Moraes e outros. Do mesmo modo, havia contribuído para a criação do programa de pós-graduação em relações internacionais San Tiago Dantas, envolvendo Unesp, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), também contínuo nele credenciado.

As mudanças de meus rumos intelectuais foram sobretudo o resultado de uma história de vida, não de opção sistemática e racional. Saí da Escola Politécnica em 31 de março de 1964. Como outros colegas da mesma época, que tiveram intensa vida política e militância estudantil nesse período, não me dediquei intensamente aos estudos. Na Poli, completei o segundo ano da graduação. Restou-me alguma preparação em métodos e em matemática.

Na Itália, onde fui depois de liberado em 1972, com esposa e filho, encontrei um movimento de solidariedade aos refugiados latino-americanos, que aumentou ainda mais depois do golpe no Chile, em 1973. Meu perfil acadêmico se definiu na escolha do curso de ciência política, que iniciei em 1973, na Universidade de Roma, aos 31 anos. Minha tese de láurea, orientada por Pietro Pastorelli, foi sobre a relação Brasil-Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

Os primeiros artigos acadêmicos foram publicados em Politica Internazionale, Terzo Mondo, Coyoacan e Problemi del Socialismo, particularmente sobre a nova política exterior que ia-se delineando no Brasil, o pragmatismo responsável. Era estranho que uma política que se apresentava como sendo de autonomia nacional, de independência e com contradições explícitas com os Estados Unidos, fosse desenvolvida por uma ditadura que havia sido constituída inicialmente com o beneplácito e até o estímulo norte-americano. Nessa época publiquei na revista mexicana Coyacan, mostrando como as classes trabalhadoras também podem ver seus interesses contemplados em uma perspectiva de desenvolvimento e autonomia.

Havia me inscrito no doutorado na França em 1978, na École de Hautes Études em Sciences Sociales, tendo como orientador o Professor Jacques Vernant, editor da revista Politique Étrangère e uma referência em estudos de relações internacionais. Depois da anistia, em 1979, ao voltar ao Brasil me inscrevi no doutorado em história na USP, sob orientação de Carlos Guilherme Mota, e comecei a dar aulas na PUC e na Universidade Metodista de São Bernardo do Campo. Segui pesquisando as relações Brasil-EUA no período da Segunda Guerra Mundial.

Aqui cabe um esclarecimento. Se há uma linha mestra seguida, esta é a da busca de compreensão de aspectos da política brasileira. Os Estados Unidos foram escolhidos como objeto de estudo pela importância que têm no sistema internacional. Inclusive para o Brasil. Na minha interpretação, estudar essas relações é uma forma de identificar as motivações da política externa brasileira, pano de fundo constante do meu trabalho acadêmico.

Na discussão da questão nacional, tema clássico da Ciência Política, há um problema que perpassa o mundo intelectual: o interesse nacional e a autonomia correspondem apenas aos interesses das classes dominantes, da burguesia, ou correspondem também aos interesses do povo e dos trabalhadores? Aí estão as conexões entre as diversas fases da minha vida. Têm a ver com perguntas ligadas à minha militância, desde os 16 anos. O interesse nacional e a autonomia não correspondem apenas aos interesses das classes dominantes. Podem corresponder também, mas nem sempre as classes dominantes os defendem. Ao contrário, muitas vezes não os defendem – como quando se tornam absolutamente internacionalizadas -, o que está acontecendo hoje, no Brasil.

No caso brasileiro, há problemas básicos na política exterior: que são a crise institucional e a crise econômica. São questões extremamente importantes para a área de relações internacionais. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva 1 e 2, o Brasil teve um papel razoavelmente importante nas relações internacionais, num patamar talvez maior do que o peso econômico e militar do país. Em parte, resultado dos valores que o governo brasileiro buscava fortalecer no sistema internacional. Um comércio mais justo que contemplasse os interesses dos países em desenvolvimento, por exemplo. Na época de Lula, o combate à fome, a defesa de valores democráticos e de direitos humanos. Antes disso, a conferência do meio ambiente, em 1992, no Rio, durante o governo de Fernando Collor de Mello, tinha tido o mesmo sentido. Tema que segue sendo muito significativo, especificamente no Lula 3. Tudo isso criou um ambiente para o fortalecimento da importância brasileira no sistema internacional.

Não sou defensor da autonomia em abstrato. Vejo a autonomia como um instrumento pelo qual as populações podem decidir sobre seus próprios destinos. É essa noção que me interessa. A ideia de direito nacional de escolha e a possibilidade de programação econômica para o desenvolvimento. Qual a capacidade de um país determinar seu próprio destino? Isso não é um tema fora do tempo e do espaço.

A preocupação, repito, leva à necessidade de compreensão de como atuam os principais atores internacionais. Foi meu tema de O Contencioso Brasil X Estados Unidos da Informática, sugerido inicialmente por Francisco Weffort. A questão da tecnologia surge como importante, e novamente, o da plena autonomia. Na mesma direção o tema de Poder e comércio: a política comercial dos Estados Unidos, livro que escrevemos com Filipe Mendonça e Thiago Lima. Quando estudamos o significado do assim denominado fair trade (comércio justo), amplamente desenvolvido no segundo mandato de Ronald Reagan, encontramos as raízes da política internacional contemporânea, das relações duras, que deixam marcas crescentes na ação dos Estados Unidos, desestruturando o discurso liberal e as próprias instituições. O que acontece hoje com as Nações Unidas e com a Organização Mundial do Comércio não é conjuntural, inverte a direção das relações internacionais como haviam sido estruturadas ao menos desde 1945. A política de negociações duras sempre existiu, visando os interesses nacionais dos Estados Unidos. Mas a forma de utilização desse instrumento depende do momento político interno norte-americano, incidindo sobre sua política externa, sugerindo tensões crescentes. Questionando questões teóricas importantes, como a ideia de interdependência. Realimentando a força explicativa do realismo.

Pensando em termos gerais, cabe dizer que o conflito se dá, e se torna irresolúvel, se não há a inclusão da política, que bem o sabemos, reflete os interesses, as contradições, os antagonismos. A política é a negociação, é a possibilidade de resolver os problemas considerando as diferenças. Senão recaímos na guerra de todos contra todos. Estamos falando aqui da política clássica, de John Locke, do liberalismo. A arte de negociar é necessária. As ciências humanas contribuem com o estudo das sociedades lançando mão de instrumentos científicos. Interpretações diferentes existem, mas partindo do conhecimento do que sejam as relações sociais. Nosso papel não é oferecer sempre soluções, mas construir cenários. A partir do conhecimento. Ao longo dos anos procurei, com muitas falhas, transmitir algo disso aos estudantes. Seja nas salas de aula, seja incentivando a pesquisa.

Como disse há pouco, a procura pelo conhecimento resultou, para mim, da tentativa de assimilar camadas sucessivas de culturas. Tentando pensar em termos coletivos. Daí, a inserção em instituições grandes ou pequenas, a Unesp, o Cedec, a Lua Nova, onde fui editor, seguido por grandes e maiores mestres, como Gabriel Cohn e Elide Rugai Bastos, o Instituto de Estudos Avançados da USP, colaborando também com a Fapesp e o CNPQ, a Associação Brasileira de Ciência Política, a Associação Brasileira de Relações Internacionais e outras no Brasil e internacionais.

Concluindo, agradeço muito a ANPOCS pelo Prêmio, que me deu a possibilidade de esboçar um balanço, antes que seja tarde!

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