Confira o discurso do Prof. Ruben George Oliven na cerimônia de outorga do título de professor emérito da UFRGS.

 

DISCURSO DE PROFESSOR EMÉRITO DA UFRGS – 17-10-2024
Ruben George Oliven

Agradeço a presença de todas e todos. Fico muito honrado pelo fato de esta cerimônia estar sendo presidida pela nova Reitora da UFRGS, eleita num processo democrático, Professora Marcia Barbosa, com a qual tive o prazer de conviver na gestão 2019-2022 da diretoria da Academia Brasileira de Ciências. Fico também muito feliz com a presença do Professor Pedro Costa, novo Vice-Reitor da UFRGS. Saúdo o Professor Odir Dellagostin, Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul e Presidente da Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa, representando a Professora Helena Nader, Presidente da Academia Brasileira de Ciências, instituição da qual me orgulho de ser um dos vice-presidentes. Saúdo também a Professora Denise Fagundes Jardim, representando a Professora Andréa Zhouri Laschefski, presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Igualmente me alegra o comparecimento dos Professores Helio Alves e Alex Niche Teixeira, diretor e vice-diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Cumprimento o Professor Pablo Quintero, coordenador substituto de nosso Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, representando o coordenador Professor Handerson Joseph. Cumprimento também o Professor Emerson Giumbelli, chefe substituto de nosso Departamento de Antropologia, representando a chefe Professora Patrice Schuch. Saúdo os ex-reitores Helgio Trindade e Carlos Alexandre Netto, e os professores eméritos Céli Regina Jardim Pinto, Dimitrios Samios, José Roberto Iglesias e Phillippe Navaux. Da mesma forma, me alegra estar em companhia de meus colegas, amigos e familiares.

Gostaria de compartilhar esta homenagem com várias pessoas, às quais devo muito. Em primeiro lugar meus saudosos pais que me incutiram a curiosidade e o interesse pela diversidade cultural e as questões sociais, temas sobre as quais minhas pesquisas como antropólogo gravitam. O mesmo pode ser dito a respeito de minhas irmãs, meus irmãos, minhas cunhadas e meus cunhados, que sempre foram muito presentes na minha vida. Arabela, minha esposa, professora de Sociologia da Educação da UFRGS, além de ser a grande paixão de minha vida, sempre foi uma interlocutora intelectual e primeira leitora do que escrevo. Nossos filhos Rafael e Débora tiveram que aguentar pais que, segundo eles, em vez de serem “normais” estavam sempre discutindo temas complexos como “o ciclo naval da civilização etrusca” e “a influência do imaginário da Baixa Idade Média na pós-modernidade”. Mas eles sobreviveram e acharam seus próprios caminhos.

Quero agradecer a meus colegas do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social que tiveram a generosidade de propor ao Conselho Universitário da UFRGS a concessão do título de Professor Emérito da UFRGS. Agradeço ao Professor Jean Segata, até recentemente coordenador de nosso programa de pós-graduação, em cuja gestão foi feita a proposta e ao Professor Hélio Alves, diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, que encaminhou o processo ao Conselho Universitário com seu parecer. Faço uma homenagem póstuma a Sérgio Alves Teixeira, professor do Departamento de Antropologia e um dos criadores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, companheiro de todas as horas com quem compartilhei muitos caminhos.

A UFRGS é minha alma mater na qual desenvolvi a maior parte de minha vida acadêmica. Aqui recebi os títulos de Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, Bacharel em Ciências Econômicas e Mestre em Planejamento Urbano. Foi também nesta universidade que comecei a lecionar no então Departamento de Ciências Sociais aos 24 anos de idade. Nesse período, teve início a Reforma Universitária de 1968 que, por um lado ocorreu num período de forte repressão política, mas por outro modernizou o ensino superior público, eliminando a cátedra vitalícia, criando os departamentos, introduzindo o tempo integral para a carreira docente e desenvolvendo a pós-graduação.

Mesmo tendo iniciado minha carreira na UFRGS com um contrato de apenas 12 horas semanais, decidi que ia me dedicar integralmente ao ensino e à pesquisa. Sempre fui professor em dedicação exclusiva. Quando fui contratado no então Departamento de Ciências Sociais havia somente 4 professores de Antropologia e a mim coube a tarefa de desenvolver o que era chamado de Antropologia de Sociedades Complexas. De alguma maneira, isso era natural, dado o meu interesse pelas questões urbanas. Criei disciplinas e seminários sobre o Fenômeno Urbano, Comunicação e Cultura, Cultura Popular e Indústria Cultural, Urbanização e Mudança Social, Sociedade e Cultura no Brasil, Significados Simbólicos do Dinheiro e outros temas. Ao mesmo tempo comecei a pesquisar sobre diferentes grupos e culturas urbanas.

Decidi também publicar o resultado de minhas pesquisas e minhas reflexões. Isto se deu primeiro em suplementos culturais de jornais, depois em revistas acadêmicas e em livros. Publiquei oito livros e centenas de capítulos em obras coletivas e artigos em revistas científicas. A maior parte é fruto de minhas pesquisas e reflexões sobre temas culturais e sociais.

Minha tese de doutorado, realizada na Universidade de Londres, foi publicada como livro com o título de Urbanização e Mudança Social no Brasil. Além de discutir o processo de urbanização pelo qual o Brasil passou, ela está baseada numa longa pesquisa que comparou diferentes grupos sociais vivendo num mesmo contexto urbano.

Ao voltar ao Brasil, depois de quatro anos vivendo na Inglaterra, comecei a me dedicar ao estudo da cultura brasileira e sua relação com a identidade nacional. Junto com colegas de outras universidades brasileiras, criei o Grupo de Pesquisa “Cultura Brasileira” da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, que promoveu vários seminários.

Quando me interessei pelo estudo da cultura brasileira, teve início o renascimento da cultura gaúcha, com o crescimento do número de Centros de Tradições Gaúchas, de festivais de música nativista e várias outras manifestações de uma cultura que faz referência constante ao meio rural numa época em que 85% da população do Rio Grande do Sul vive em situação urbana. Desenvolvi uma pesquisa que envolveu extenso trabalho de campo examinando o fenômeno e como a cultura gaúcha se relaciona com a brasileira. Disto resultou meu livro A Parte e Todo. A diversidade cultural no Brasil-nação. O livro ganhou o Prêmio de Melhor Obra Científica do ano, concedido pela ANPOCS, e foi traduzido para o inglês e o espanhol.

Cresci numa casa em que se ouvia música o tempo todo. Minha mãe apreciava música erudita e meu pai amava jazz e blues. Ambos gostavam de música popular brasileira dos anos 1930, 40 e 50. Talvez seja por isso que me interessei pela Música Popular Brasileira, tema que sempre pesquisei. Disso resultaram muitos artigos. Passei vários anos como professor visitante nos Estados Unidos e decidi estudar a música daquele país, principalmente os blues antigos. Atualmente, estou trabalhando num livro que compara a música popular brasileira e norte-americana na primeira metade do século passado.

Na década de setenta, em que a pós-graduação começou a se expandir, meus colegas me encarregaram de criar o nosso primeiro curso nesse nível: a Especialização em Antropologia de Sociedades Complexas que teve início em 1974, o que faz que neste ano de 2024 estejamos comemorando 50 anos de pós-graduação em Antropologia na UFRGS. Em 1978-79 coordenei a criação de nosso mestrado. Em 1991 criamos o doutorado e atualmente somos um programa de excelência que tem a mais alta classificação na avaliação da CAPES. Nada disso foi feito sozinho, toda minha carreira foi construída com as os colegas do Departamento de Antropologia. Costumamos dizer que em nosso departamento todos podem tocar o piano, mas todos precisam também carregá-lo. E não se trata de um instrumento qualquer, mas de um piano de cauda do qual se esperam grandes concertos. Somos uma orquestra que procura tocar de forma afinada.

A Antropologia é uma ciência que se dedica a estudar e compreender as diferenças e no nosso departamento isto é seguido à risca. Somos muito diversos em personalidades, temperamentos, religiosidades, visões políticas, mas convivemos de forma harmônica e sabemos negociar nossas divergências e resolver os conflitos de forma civilizada.

Orientei mais de 50 dissertações de mestrado e teses de doutorado. Nada me deixa mais orgulhoso que ver meus alunos encontrarem seus próprios caminhos e serem bem-sucedidos. Tive a alegria de ver dois de meus alunos receberem o Prêmio de Melhor Tese da CAPES e da ANPOCS: Arlei Damo, atualmente meu colega e Rosana Pinheiro-Machado, atualmente professora na Universidade de Dublin.

Nunca disputei nenhum cargo na UFRGS ou fora dela. Todos as posições que ocupei foram consequência de as pessoas dizerem: “Agora é tua vez” e eu aceitar o desafio. Assim, coordenei, durante vários anos, nosso programa de pós-graduação, fui eleito membro da Câmara de Pesquisa e Pós-Graduação e membro do Conselho de Ensino e Pesquisa e do Conselho Universitário da UFRGS. Em nível nacional, fui presidente da Associação Brasileira de Antropologia, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais e atualmente sou Vice-Presidente da Região Sul da Academia Brasileira de Ciências. Igualmente, coordenei o Comitê de Ciências Humanas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul e o Comitê de Ciências Sociais da CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Integrei também o Conselho Deliberativo deste importante órgão de fomento à pesquisa. Estas fascinantes experiências me mostraram que para ser bem-sucedido é preciso realizar um trabalho coletivo que empolgue e mobilize pessoas. Isto requer ouvir os outros, aceitar suas sugestões e construir consensos.

Estive engajado em várias atividades editoriais de revistas acadêmicas. Integrei o conselho de aproximadamente quarenta periódicos. Fui um dos criadores da Revista Brasileira de Ciências Sociais. Atualmente, sou o editor-chefe de Horizontes Antropológicos, revista de nosso programa de pós-graduação, criada em 1995, e um dos cem periódicos em língua portuguesa mais citados. Editar uma revista é algo trabalhoso, mas ao mesmo tempo muito gratificante.

A Professora Helena Nader, Presidente da Academia Brasileira de Ciências, costuma brincar que eu sou o único humano de nossa diretoria, já que os demais membros vêm das ciências exatas. Gostaria de argumentar que todas as ciências são humanas. Elas são praticadas por seres humanos, frequentemente lidam com seres humanos e, mesmo quando não o fazem diretamente, têm consequências para a humanidade. Isto me faz pensar sobre a responsabilidade dos cientistas sociais. Nossas pesquisas, além de revelar dados sobre a realidade social e as questões que ela coloca, têm um papel fundamental em ajudar a apontar caminhos e soluções que possam levar a uma maior justiça social e respeito pelas diferenças culturais. E sem ciência, não há justiça social.

O Brasil, apesar de ser um país rico, é viciado em desigualdade. Não só a desigualdade de renda, na qual estamos em uma das piores posições no mundo, mas também desigualdades raciais e de gênero, temas sobre os quais se falava muito pouco até recentemente. Apesar de a maioria da população brasileira não ser branca, os negros e pardos continuam sendo discriminados no dia a dia. Os povos originários têm suas terras constantemente invadidas e são vítimas dos garimpeiros e do mercúrio que envenena seus rios e terras. Atualmente há inclusive tentativas de rediscutir o seu direito às terras que nossa constituição lhes assegura. As mulheres têm conquistado direitos e avançam no mercado de trabalho, ocupando cada vez mais postos-chave em empresas e organizações. Mas continuam vítimas da desigualdade, recebendo salários inferiores aos dos homens. E as estatísticas de feminicídio mostram uma realidade alarmante, que precisa ser enfrentada. O preconceito de gênero também se estende às pessoas LGBTQIA+, que são vítimas de todo o tipo de violência. A chamada “índole pacífica” dos brasileiros não passa de uma lenda que oculta uma realidade que a desmente e que mostra um clima crescente de intolerância. Neste predomina a dificuldade de conviver com o diferente e a prática do “cancelamento” dos que ousam divergir.

Apesar da expressiva produção acadêmica brasileira, o negacionismo científico é outra questão premente no Brasil. Ele esteve presente na pandemia da Covid que vitimou mais de 700.000 pessoas e em relação ao qual o então desgoverno procurou minimizar o problema e propor soluções mágicas. O mesmo pode ser dito sobre o negacionismo climático e o aquecimento do mundo. A recente enchente que assolou o estado do Rio Grande do Sul mostrou de forma dramática as consequências de agredir o meio ambiente. A Amazônia, uma das maiores riquezas do Brasil encontra-se constantemente ameaçada pela devastação.

Nos últimos séculos, a ciência fez descobertas notáveis que permitiram erradicar doenças e aumentar a expectativa de vida. Os cientistas têm uma responsabilidade crucial em se fazer ouvir, traduzindo suas descobertas em linguagens compreensíveis, contrapondo-se à desinformação e alertando sobre as consequências de não respeitar o meio ambiente. Temos que mostrar que todos nós fazemos parte da natureza e que sem ela as próximas gerações não sobreviverão.

Podemos ser pessimistas nas nossas análises, mas temos a obrigação de ser otimistas na ação. As ciências, em particular as ciências sociais têm uma contribuição muito importante a dar no atual momento pelo qual passa o Brasil e o resto da humanidade.

Tive a experiência de ser professor visitante em várias universidades estrangeiras: na Inglaterra, na França, na Holanda, na Espanha, em Portugal, nos Estados Unidos, no México e na Argentina. Todas estas experiências foram muito enriquecedoras, mas acima de tudo me mostraram que as universidades brasileiras e em particular a nossa UFRGS não perdem em qualidade quando comparadas com outras instituições de ensino superior. Podemos não ter os recursos materiais de universidades mais ricas que as nossas, mas nossos docentes e discentes são incomparáveis. Eles valorizam como ninguém o saber e o conhecimento.

Por tudo que acabo de dizer gostaria de compartilhar a distinção que hoje recebo com meus colegas aos quais sou extremamente grato por todos esses anos de rica e prazerosa convivência. Se hoje sou professor emérito, o mérito é de todos nós.


 

Ruben Oliven foi presidente da ANPOCS no biênio 2007-2008, também presidiu a Associação Brasileira de Antropologia, sendo membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), cuja diretoria integra atualmente. Professor do Departamento de Antropologia da UFRGS, Ruben também lecionou diversas universidades pelo mundo.

Sua obra “A Parte e o Todo: a diversidade cultural no Brasil Nação”, lançada em 1992, tornou-se um clássico das ciências sociais brasileiras, tendo recebido o Prêmio Melhor Obra Científica pela ANPOCS. Sua ampla e importante produção se concentra em temas como antropologia urbana, tradição e modernidade, identidades nacionais e regionais, consumo e significado simbólico do dinheiro.

A cerimônia de outorga ocorreu no dia 17 de outubro de 2024, na Sala dos Conselhos da UFRGS.

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