
Nota em homenagem à MIchel Misse.
[nota escrita por Gabriel Feltran a convite da ANPOCS]
Michel Misse nos deixou nessa semana, como consequência de um câncer de pulmão. Ficamos órfãos da sua vivacidade, e dos laços substantivos que ele tecia cotidianamente com os seus pares, colegas mais jovens e estudantes. Mas generoso como sempre foi, Misse nos deixa o legado da sua obra monumental, que talvez nunca tenha sido tão atual, tão urgente.
Pioneiro do campo de estudos sociológicos do conflito urbano e do crime, ainda no Brasil dos anos de chumbo, Michel Misse dedicou meio século de sua vida a estruturar no país as sociologias da violência, da segurança pública, da justiça criminal, da proteção e do controle social. Seu artigo mais citado é “Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria ‘bandido’”, publicado na Revista Lua Nova em 2010 e disponível online. Seus livros clássicos no campo de estudos, que influenciaram gerações, são “Crime e Violência no Brasil Contemporâneo”, de 2005, e “Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro”, tardia publicação de sua tese de doutorado defendida em 1999 no antigo IUPERJ. Mas é impossível não se recordar de três das inúmeras pesquisas individuais e coletivas fundamentais que ele orientou. A primeira, sobre como o inquérito policial enquadra e produz a seletividade da justiça no Brasil (publicada no livro intitulado “O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica”); a segunda, a mais ampla e completa investigação sociológica sobre os ilegalismos nas regiões de fronteira no Brasil (publicada pelo Ministério da Justiça como “Segurança Pública nas Fronteiras”) e a terceira, sobre a trama institucional que autoriza, legitima e perpetua as altíssimas taxas de letalidade policial no Brasil (cujos resultados também podem ser lidos no artigo “Letalidade policial e indiferença legal”, publicado na Revista Dilemas.
Michel Misse foi professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, do qual também foi diretor e pelo qual se aposentou. Fundou ali o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), referência de formação e pesquisa para gerações, e a Revista Dilemas, ainda hoje a mais importante publicação acadêmica brasileira para os estudiosos do conflito e da violência. Misse foi também um colega presente e um intelectual de inteligência rara, que sabia diferenciar como poucos sua sociologia, cujas contribuições teóricas e analíticas correram o mundo, de seu papel como cidadão inconformado contra o autoritarismo, de ontem e de hoje. Michel Misse adorava discutir política, e foi um militante apaixonado da democracia e da igualdade. Combateu a ditadura militar com coragem até vencê-la, mesmo que ela o tenha tido preso e torturado; participou ativamente do processo de democratização, lutou contra os ataques à universidade na ascensão da extrema direita, e seguia ativo até o final.
Misse se destacava pelo equilíbrio fino entre o domínio profundo da teoria sociológica, originalmente nas suas vertentes marxista e weberiana, mas também nas dimensões funcionalista, interacionista e pragmatista, e a sua enorme capacidade analítica aplicada aos problemas empíricos – estruturais e técnicos, políticos, estratégicos, operacionais – que nos levaram, década após década, ao desastre que é hoje nossa (in)segurança pública. Quem acompanhar seus muitos ensaios, entrevistas e participações públicas sobre o tema da segurança, verá com que clareza Misse conhecia não apenas as origens, mas os meandros e mecanismos da produção, ativa e cotidiana, da insegurança pública e da violência no Brasil. Tendo convivido de perto com Luiz Antonio Machado da Silva, Alba Zaluar, Roberto Kant de Lima e Luis Eduardo Soares, entre muitos outros, Michel Misse influenciou diretamente ao menos outras duas gerações de sociólogos, antropólogos e profissionais do direito, no Brasil e na América Latina. Sua obra de pesquisa foi publicada em diversas outras línguas, sobretudo espanhol, francês e inglês. Sua influência, para além de sua obra, seguem muito vivas entre elas.
Michel Misse deixa três filhos, André, Daniel e Michel, e sua companheira Joana Vargas, além de dois netos. Deixa muitos amigos, e seu bloco de carnaval Maracangalha. A ANPOCS se solidariza com a família e com toda a comunidade de cientistas sociais, rendendo uma homenagem de despedida a esse enorme sociólogo brasileiro.