Em sua fala, o professor Russell Parry Scott revista sua trajetória e destaca os grupos e lugares que o “permitiram sentir que eu era capaz de agir, escrever e colaborar chegando o mais próximo possível a me sentir ‘um de nós’”, um coletivo que, “juntos [buscou] diminuir vulnerabilidades e combater desigualdades para contribuir na construção de uma sociedade com justiça”. Leia a íntegra aqui
Discurso de Russell Parry Scott, por ocasião do recebimento do Prêmio ANPOCS de excelência Acadêmica Gilberto Velho em Antropologia, 2024.
Receber esta premiação da ANPOCS foi uma coisa inesperada por mim, e me dá uma oportunidade para agradecer a muita gente. A maior parte dos meus agradecimentos precisam ser coletivos devido à enorme quantidade de pessoas que merecem ser citadas nominalmente, mas que me levaria a estender esta fala para um uso de tempo além da capacidade de tolerância de qualquer plateia.
Quatro agradecimentos se fazem absolutamente obrigatórios justamente por sua importância no contexto deste prêmio.
O primeiro é à própria ANPOCS e ao comité e à diretoria que me indicaram e me escolheram para o prêmio. Não sei como chegaram à conclusão que eu merecia o prêmio, mas eu sei que estão contribuindo para uma sensação pessoal minha de reconhecimento de ter feito, e ainda de estar fazendo, alguma contribuição, não somente à disciplina de Antropologia que escolhi, mas também às disciplinas com as quais sempre dialoguei, Sociologia e Ciência Política, cuja expressão maior está nesta associação que nasceu com o desejo de promover esse diálogo, e também com um desejo de fazer com que a sociedade brasileira se livrasse de uma ditadura opressiva e encontrasse um caminho de respeito aos direitos humanos. São duas metas que compartilho inteiramente com a ANPOCS como instituição.
O segundo agradecimento é à minha colega, amiga, e antropóloga social e linguística muito honrada, Judith Hoffnagel, que fez essa apresentação sobre os meus trabalhos, muitos dos quais ela teve ocasião de acompanhar e, ainda mais, participar diretamente, e à amizade que formamos na vida particular e na condução de um núcleo de pesquisa, FAGES, que foi formado em 1983. A finura dos seus comentários sucintos e sua tranquilidade e seriedade não são coisas que somente eu prezo, mas que eu posso dizer que todos os nossos colegas e nossos alunos reconhecem. E basta dar uma olhada no livro Temas em Antropologia e Linguística, que os colegas e admiradores organizaram na ocasião da sua aposentadoria, reunindo as escritas dela, que a fizeram uma das nossas mais respeitadas antropólogas sociolinguistas. Tenho orgulho de poder dizer que é uma das minhas melhores amigas.
O terceiro agradecimento é à Universidade Federal de Pernambuco que me fornece, já por meio século, uma base com a qual posso contar para poder realizar e valorizar meu trabalho. Como estagiário no Instituto Joaquim Nabuco, tive a sorte de estabelecer conexões independentes com um seminário na Universidade em 1972, no outro lado do rio Capibaribe, sobre relações de poder no Nordeste, conduzido por David Maybury-Lewis e Heraldo Souto-Maior, onde cheguei a conhecer vários jovens profissionais que chegariam a ser meus colegas ao longo da carreira, tanto na universidade quanto fora dela. Mesmo assim o meu primeiro reconhecimento profissional formal na UFPE veio de uma amizade entre dois ABD, (All But Dissertation´s), quando, quatro anos depois, Roberto Motta, que tinha articulado a formação do curso de pós-Graduação em Antropologia na Universidade que incluia Professora Judith e um conjunto de outros antropólogos, resolveu me convidar para ser professor visitante, e foi ele também que me indicou para ser co-coordenador tanto numa pesquisa com ele sobre Sobrevivência e Fontes de Renda no Recife, e, depois para ser o coordenador antropológico de uma pesquisa sobre a população rural reassentado pela barragem de Itaparica. Um concurso e quarenta anos depois continuo aqui, e com muito prazer.
Essas experiências me fisgaram para passar essas próximas quatro décadas na Universidade, mas eu não poderia fazer isso se não fosse com o apoio pleno, dedicação e carinho da minha esposa, Zênia, que aguentou muitos anos de eu parecer passar mais tempo na universidade que em casa. Com ela tenho três filhos – Henrique, que passou anos me acompanhando na universidade, inclusive com as vindas para ANPOCS, que Deus o tenha; com Amanda, que seguiu nos passos de antropologia com as suas novas feições no Brasil e com quem ainda tenho uma convivência diária e que assegura que o que escrevo se torna compreensível para o leitor brasileiro, me livrando dos anglicismos persistentes e dos descuidos, e Catarina, que, questionando minha decisão de ser daqui, de ser pernambucano, seguiu o caminho muito brasileiro de migração de retorno para os Estados Unidos, estabelecendo uma casa própria no estrangeiro, que antes era minha casa. Zênia me acompanhou e me acompanha em muitas das minhas pesquisas de campo, e posso dizer, sem medo de errar, que se não fosse ela, a minha compreensão do campo e meu entrosamento nos locais da pesquisa seriam muito mais incompletos. Enfim, o mais importante não pode ser a contribuição ao meu trabalho, e sim a uma convivência diária e um apoio mútuo em família.
O nome deste prêmio é Gilberto Velho, o que não poderia ser mais relevante para mim. Em 1971, meus companheiros na Pós-Graduação na “Introdução à Antropologia” na University of Texas foram Gilberto Velho e Yvonne Maggie, e foi com eles, enquanto eu planejava a minha primeira vinda para o Rio e para o Recife, que eu tive minhas primeiras impressões do Brasil para onde eu viria. Mais tarde, lembro de estar em plena sala de estar de Gilberto Velho no Rio de Janeiro, comentando com duras críticas da ditadura, semelhantes às que nós compartilhávamos em Texas, e ele me mandando baixar a voz, pois desconfiava que poderiam ter deixado uma escuta em algum lugar dentro da própria casa dele. Foi uma aula e uma experiência da cautela combinada com uma forte dosagem de indignação sobre injustiças.
Não foi mais com Gilberto, mas lembro também de uma hora quando segui o conselho de telefonar para um colega, em São Paulo, se não me falha a memória, para organizar a participação num seminário que discutia algo que me interessava, e logo no início da conversa, o professor mandou que eu esperasse um minutinho, e ouvi a voz dele, modificada pela mão cobrindo o telefone, dizer “Vem cá Maria, ouvir um americano com sotaque de nordestino!”. Senti plenamente, mais uma vez, o que quer dizer ser do Nordeste nessa ocasião.
Fecho esses agradecimentos com a minha lembrança de como ANPOCS foi importante em contribuir, entre outros assuntos, para os meus estudos sobre o domínio doméstico e o poder. O meu primeiro encontro de ANPOCS foi em Belo Horizonte, e fui o único homem num grupo de trabalho sobre “A mulher na força-de-trabalho”, organizado por Neuma Aguiar. Soube apresentar o meu trabalho sobre “Produção Doméstica”, e depois ficar ouvindo atentamente enquanto o debate pegava fogo trabalho por trabalho, ação por ação. Foi um aprendizado sobre estratégias e táticas de introduzir e de levar adiante assuntos sobre o que chegaria a ser chamado mais tarde de relações de gênero. Talvez com tempo ganhei um pouco mais de voz, mas o que aprendi naquela hora e depois, com os muitos colegas, e sobretudo as muitas colegas, que compartilhavam comigo discussões sobre o público e o privado e sobre família e sociedade (que foi o tema de um GT de ANPOCS que coordenei durante três anos nos anos noventa, é uma das muitas coisas que devo a ANPOCS, a quem, mais uma vez eu agradeço com sinceridade.
Finalizo com um agradecimento a tantas pessoas de tantos grupos e tantos lugares diferentes que me permitiram sentir que eu era capaz de agir, escrever e colaborar chegando o mais próximo possível a me sentir “um de nós” em cada um dos grupos, e sobretudo, em termos trabalhado juntos na busca de diminuir vulnerabilidades e combater desigualdades para contribuir na construção de uma sociedade com justiça.