Por Márcio Seligmann

Publicado originalmente em 16/02/2021

Nietzsche no seu texto “Dos usos e desvantagens da história para a vida” afirmara que “é totalmente impossível de se viver sem o esquecimento”.

Para ele: “A alegria, a boa consciência, o ato feliz, […] depende, em cada indivíduo assim como no povo, […] de que se saiba tanto esquecer na hora certa, como também que se recorde na hora certa.”

Estamos no século XIX e o europeu afoga sob o peso de sua história. Mas no século XX esse europeu e o mundo colonizado por ele afundam em um mar de violência, genocídios, ditaduras, limpezas étnicas. Não ficou mais tão claro como os atos de esquecer e lembrar poderiam ser pensados como um músculo que poderia ser ativado/desativado. Esquecer nos séculos XX e XXI tornou-se uma questão ética e associada aos direitos humanos.

O STF decidiu negar a possibilidade de se decretar o esquecimento. Ele decreta o óbvio, pois, sobretudo em nossa era do “Total recall”, não podemos simplesmente ordenar o esquecimento. A ironia é que o STF decreta o não direito ao esquecimento em um país marcado pela prática renitente do apagamento e do memoricídio. Se não existe uma “arte do esquecimento” (Umberto Eco) existe a terrível arte de se apagar as possibilidades de inscrição da história da violência. As elites brasileiras, representadas em nossa suprema corte, em 2010 ratificaram a lei de anistia de 1979 no sentido de uma lei de amnésia e perdão recíproco (figuras jurídicas impossíveis quando se trata de crimes hediondos e inafiançáveis).

No país do memoricídio da história da escravidão, da violência policial, das torturas, dos feminicídios, dos massacres de camponeses e operários agora oficialmente não temos direito ao esquecimento.

Diferente da “ars oblivionalis” de Nietzsche, Walter Benjamin nas teses “Sobre o conceito de história” formulou o mote bastante atual: “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘como ele foi de fato’. Significa apoderar-se de uma recordação, tal como ela relampeja no instante de um perigo.”

Márcio Seligmann. Professor titular de Teoria Literária (UNICAMP).

*Este posto não representa necessariamente a posição da ANPOCS.

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