Por Anderson Ricardo Trevisan
Publicado originalmente em 03/08/2021
#AbreAspas | “O Brasil se interessa pouco pelo próprio passado. […] O descaso pelo que existiu explica, não só o abandono em que se encontram os arquivos nacionais, mas até a impossibilidade de se criar uma cinemateca. Essa situação dificulta o trabalho do historiador, particularmente o que se dedica a causas sem importância como o cinema brasileiro.”
A desolada citação é do crítico Paulo Emílio Sales Gomes, e aparece originalmente em um texto de 1969, intitulado “Pequeno cinema antigo”, mas poderia ter sido escrita nos dias atuais, quando tivemos mais uma prova desse descaso: o incêndio em um dos galpões da Cinemateca Brasileira. Paulo Emílio fundou junto com os jovens colegas uspianos Antônio Candido de Mello e Souza e Décio de Almeida Prado, em 1940, o Clube de Cinema que mais tarde viria a ser a Cinemateca Brasileira. Em 1958, ele já reclamava da “situação de penúria” do lugar, que apenas em 1984, sete anos após sua morte, tornou-se órgão vinculado ao Governo Federal.
Infelizmente, a situação de displicência com nossos museus e acervos é histórica. Um dos casos mais emblemáticos é o do Museu Nacional, que pegou fogo em 2018. A própria Cinemateca já sofreu 5 incêndios, revelando que alguns raios caem repetidamente no mesmo lugar. Perdas menos visíveis, porém, acontecem rotineiramente, sem que haja tanto alarde: o Banco de Dados Culturais, que continha diversos filmes do acervo da Cinemateca em formato digital, está fora do ar há pelo menos um ano. Essas perdas, sejam físicas ou digitais, revelam problemas estruturais que, infelizmente, só são enfrentados em situações limite como a que vivemos, por conta do grande alarde que recebem na mídia. As imagens cinematográficas, parte indissociável de nosso pensamento visual, são ferramentas poderosas de contato com essas reminiscências, e quando um acervo se perde, extingue-se também possibilidades de uma construção dinâmica da memória viva e crítica de um país, fundamental para uma sociedade efetivamente democrática.
Anderson Ricardo Trevisan. Professor do Departamento de Ciências Sociais na Educação da Faculdade de Educação/Unicamp (@unicamp.oficial)
*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS