Por Antônio Sérgio A. Guimarães
Publicado originalmente em 18/06/2021
#AbreAspas | A decisão do presidente da Fundação Palmares de se desfazer de parcela valiosa do acervo da instituição por motivação ideológica é de atrocidade, estupidez e covardia ímpares.
Primeiro, porque o acervo da fundação, criado para homenagear a memória da resistência e da sobrevivência cultural dos povos africanos escravizados no Brasil, deve ser construído por muitas gerações, as quais brandiram diferentes ideias, nutriram diferentes atitudes e lutaram com diferentes armas. Todos os que não se acovardaram e não se apequenaram diante da opressão e da injustiça têm um lugar nessa memória. Não cabe ao administrador de plantão refazer o passado; se valente fosse e ideias tivesse, acrescentaria a sua própria visão da história sem querer eliminar as demais.
Segundo, porque a violência contra o patrimônio cultural dos que resistiram e o simbolismo de sua destruição é arma dos que usam o poder para humilhar e tentar destruir a integridade dos que momentaneamente estão sob o seu governo. Foi assim que os senhores quiseram desmoralizar os escravizados, achando que poderiam impor-lhes uma visão de mundo adequada à escravidão.
Inutilmente tentaram destruir Palmares e todos os quilombos, que ressurgiram sempre da humanidade que nutre os corpos negros. Os senhores do passado perderam nessas tentativas de desumanização e de limpeza cerebral. Os de hoje, se não fossem estúpidos, não insistiriam na mesma estratégia. Mas a ação demonstra também notável covardia porque não se tenta destruir a própria herança, não se pode fugir de suas origens e de seus caminhos para construir o futuro. A coragem não se constrói usando máscaras ou arremedos culturais. Palmares é o símbolo da coragem; lutar pela sua integridade é o dever principal do seu administrador.
Antonio Sérgio A. Guimarães. Sociólogo, USP (@usp.oficial)
*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.