Por Paulo Augusto Franco
Publicado originalmente em 14/01/2022
#AbreAspas | Estamos em Nápoles, cidade do sul da Itália, próxima ao Monte Vesúvio, um vulcão ativo. Na cidade banhada pelo mar Tirreno o vultuoso conjunto artístico e arquitetônico não é mais importante do que as ruas e becos estreitos onde circulam os sons, gestos e costumes da vida local. Em 1984, a cidade acompanha, eufórica, a contratação do jogador argentino Diego Maradona pelo time de futebol local. Em 1986, nas quartas de final da Copa do Mundo, as famílias, reunidas ao redor dos aparelhos de TV, comemoram o irregular gol de mão feito por Maradona contra a Inglaterra, jogada que foi batizada como “a mão de Deus”.
É nesse contexto que Paolo Sorrentino nos conta a história de seu novo filme “A mão de Deus” (2021), com forte intenção autobiográfica, como “Amarcord” (1973), de Fellini – referência de Sorrentino. A Nápoles que assistimos é aquela sobrevoada e edificada pelas memórias do autor/diretor. Acompanhamos Fabietto, um adolescente experimentando os primeiros sentidos e contradições da vida: as excentricidades e os dramas dos vários e interessantes membros de sua família, os desejos, as doenças, as sensibilidades sexuais, as mágoas, o crime, os mistérios das crenças, a tragédia da morte e a atração pela arte, em especial, pelo cinema.
A memória é um trabalho de construção e de representação seletiva sobre o passado. Fabietto é o jovem Sorrentino elaborando, com os próprios registros, o cinema como forma de dar expressão e significado à vida, à dor e a si mesmo, no passado e no presente. Fabietto, a certa altura, confessa: “Eu quero uma vida imaginária como aquela que tive antes. Eu não gosto da realidade mais. É por isso que quero fazer filmes”. Para uma parte do público da Copa de 1986, “La mano de Dios” foi um feito do craque. Marchino, o irmão do protagonista, viu uma vingança contra o imperialista Reino Unido após a Guerra das Malvinas. Para Fabietto e Sorrentino, finalmente, o gol foi uma salvação – assim como o cinema pode ser? – diante das dores da vida.
Paulo Augusto Franco (@francoguto). USP (@usp.oficial)
*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.