Por Pedro Schwarcz
Publicado originalmente em 10/11/2022
#AbreAspas | Gal Costa nos deixou na manhã de ontem do dia 9 de novembro de 2022. E o que ela deixou para o Brasil, o que ela produziu de Brasil em sua arte e o que ela cantou de Brasil é inestimável. Esse Brasil da alegoria e da indefinição, do encanto e desencanto e rencantamento do mundo, da dialética entre o profano e o sagrado, de contrastes, contradições e do Tropicalismo.
Gal Costa partiu da bossa nova na escola mais João Gilbertiniana possível em Domingo, disco em parceria com Caetano Veloso, para o Tropicalismo e podemos dizer que dentre todos os tropicalistas, Gal Costa foi a mais visceralmente tropicalista. Nenhuma intérprete usou tanta guitarra pesada, tanta distorção, ninguém colocou tanto Jimi Hendrix na salada brazuca. O disco Gal, de 1969, falo do segundo do ano de 1969 conhecido como Gal psicodélico, é prova bruta disso.
Esse mesmo som pesado aliado ao lirismo de Caetano, Duda Machado, Gilberto Gil, junto com a música de Erasmo e Roberto, com forró e baião, com participações de Tim Maia na voz em uma faixa (Love, Try and Die) está no disco Legal, com aquela capa linda do Helio Oiticica.
Uma coisa interessante de falar da Gal foi sobre sua voz e as transformações da sua voz. Ora Bossa Novista, ora rockeira arranhada esganiçada, ora propositalmente brega e kitsch B como em chuva de prata. Gal cantou bossa nova em Domingo, cantou rock, Roberto, Caetano e Tom Zé no disco de Gal Costa de 1969, no outro do mesmo ano como já citei, o Gal psicodélico, deixou tudo mais pesado ainda, fez o Legal, O Fa-tal e voltou a voz mais baixa no disco “Cantar”. Gal Costa extrapolou novamente, mas de um jeito diferente em “India”, onde a cantora já não tinha mais medo de explorar um Brasil profundo e cafona ao mesmo tempo. A faixa título é um exemplo claro disso; música paraguaia, sertaneja com arranjo do Duprat que dá um tom todo épico. O disco é uma mistura rica de forró, jazz, funk e muita música regional brasileira. Não podemos deixar de mencionar a sensualidade da capa que causou escândalo e podemos dizer seguramente que Gal foi uma artista que usou de seu corpo como elemento estético, político, como forma de brincar com o poder, como forma de provocação. Em Caras e Bocas Gal canta Dylan (Negro Amor, It´s al over now, baby blue) traduzido lindamente por Péricles Cavalcante e Caetano Veloso e faz um disco que também traduz muito bem os caminhos que a música brasileira estava tomando já no fim dos anos 70, Agua Viva idem. O fato é que Gal cantou o desbunde, o deboche, o desespero, a dor e cantou um Brasil que viveu anos de chumbo, abertura, contracultura, rompimentos e retornos de tradições estéticas.
Nessa capa a imagem de Gal está retratada quase que como uma pirâmide egípcia que dentro contém um mural, na verdade seus cabelos volumosos são tomados por colagens de fotografia de referências/personalidades variadas. Gal vai lançar nesses períodos obras primas que fizeram seu tempo. No disco – Fa-tal – Gal a todo vapor, álbum ao vivo, com show/espetáculo dirigido por Waly Salmão, Gal vai cantar o próprio poeta e diretor em “Mal Secreto” e “Vapor Barato”, Gal vai cantar e revelar Luiz Melodia com “Pérola Negra”, cantar Moraes Moreira e Luiz Galvão em “De um Rolê”, cantar Roberto tão lindamente e Luiz Gonzaga… Gal cantou de tudo. Gal cantou de tudo e – principalmente nessa fase rockeira – radicalizou muito quando falamos de som. Lanny Gordin e Macalé foram muito responsáveis por essa parte.
Pedro Schwarcz (@pedro_schwarcz). Ator e Assistente editorial da Companhia das Letras
*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.