Por Christina Vital da Cunha

Publicado originalmente em 27/02/2024

#AbreAspas | Esta pergunta nos interpela em dois planos. O primeiro deles nos leva a pensar sobre uma dimensão normativa, localizável em termos jurídicos. Outra dimensão nos lança sobre o terreno movediço da vida social, da “laicidade vivida”. O caráter laico do Estado está consagrado desde a primeira Constituição Republicana brasileira, em 1891. Contudo, é somente na Constituição de 1988 que a formulação sobre “Estado Laico” assume os contornos atuais resultado do desenvolvimento científico e das variadas demandas sociais existentes e representadas nesta Carta. No século XIX, portanto, teve início o longo processo que beneficiaria à liberdade e à pluralidade religiosa no país sem interferência direta do Estado nem na dissolução de qualquer grupo identificado como religioso e nem em sua promoção.

A ação direta do Estado deveria se pronunciar somente pela garantia do direito à existência social e jurídica de todas as religiões. Mas é justamente sobre a “laicidade vivida” que se debruçam grande parte dos cientistas sociais no Brasil. A hegemonia católica teve como corolário a banalização de modos de relação, de fazer política e de ocupar o espaço público que nos parecia soft dado o seu enraizamento cultural (sem esquecer a violência colonial e religiosa que antecedeu essa “catolicidade”).

Embora com um histórico de lutas por sobrevivência e respeito, as religiões de matriz afro religiosa compunham com a hegemonia católica de modo singular em razão do caráter não conversionista destas religiões do axé.

Nesse sentido, foram quando cresceram os autodeclarados evangélicos no Brasil e passaram a ocupar instâncias de poder e de grande visibilidade social (mídia, política partidária, mainstream da cultura etc.) que o segredo público, nos termos de Michel Taussig, foi revelado e a intolerância religiosa, esse tipo específico de violência, ganhou notoriedade. O evento conhecido como “chute na santa”, em 1995, foi um marco importante nesse sentido. Os questionamentos sociais sobre a existência ou não da laicidade do Estado, os desafios para a sua manutenção e as ameaças que se pronunciam em relação a ela formaram uma bandeira de luta importante em torno da qual muitos atores se organizaram como a Frente Parlamentar de Terreiros, criada em 2011 no Congresso Nacional, o Meel – Movimento Estratégico pela Laicidade do Estado, em 2013, a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, em 2016, e mesmo a Associação Nacional de Juristas Pela Democracia, em 2018.

A partir de 2016, começamos a observar de modo mais frequente a defesa combinada de Laicidade e Democracia, isso porque na sessão que aprovaria o impedimento da então presidente Dilma Rousseff (PT) os votos eram pronunciados principalmente em defesa de Deus e da família. Durante o governo passado mais uma vez a religião, notadamente uma forma de cristianismo pentecostalizado, mobilizada como código para comunicar posicionamentos ideológicos e políticos, fomentou uma onda de adesões e reações apaixonadas. Neste contexto, a defesa da democracia e da Laicidade se fizeram presentes como forma de luta de minorias religiosas e de segmentos cristãos críticos do fundamentalismo e do extremismo político que muitas lideranças evangélicas e católicas representavam. Com base no conjunto de pesquisas realizadas podemos dizer que, embora formalmente garantida, a luta para que a laicidade se faça valer na política, nas escolas e em tantas instituições democráticas brasileiras está longe de cessar.

Christina Vital da Cunha. LePar/UFF

*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.

Deixe um comentário