Por Paulo Augusto Franco

Publicado originalmente em 04/05/2024

#AbreAspas | Em maio de 1941 a Revista do Globo publicava uma reportagem com a fotografia acima. Aí vemos uma cena noturna do centro de Porto Alegre. Os letreiros luminosos anunciam peças de teatro, filmes e shows. A iluminação paira sobre uma aglomeração de pessoas na esquina da rua Voluntários da Pátria com a rua Pinto Bandeira, no teatro e cinema Coliseu.

A imagem pode divulgar a intensa vida cultural da capital. Mas dessa vez enfatiza: “um flagrante inédito”. Escreve o repórter: “um maravilhoso espetáculo dos luminosos refletindo, à noite, sobre a água estacionada na esquina do Restaurante Mário”.

O Rio Grande do Sul e Porto Alegre viviam, à época, uma enchente sem precedentes. No interior, lavouras são destruídas. Após mais de vinte dias de chuvas o centro da capital ficou praticamente debaixo d’água, aulas foram suspensas, bondes pararam de circular e o fornecimento de água fora suspenso. Muitas famílias ficaram desalojadas e os comerciários sofreram perdas drásticas. Ao som dos apitos da Limpeza Urbana, botes podiam ser vistos carregando famílias de trabalhadores nos arrabaldes da capital, lugares onde, de certo, o sofrimento da população foi mais intenso devido à falta de estrutura e descaso das autoridades públicas.

Mas na revista, ao invés de denúncias sobre o sofrimento da população, só podia-se ler sobre o “inédito espetáculo” de luzes e generosidade: dos últimos andares dos “arranha-céus” modernos da recém expandida avenida Borges de Medeiros, as famílias atiram peças de roupas para os desabrigados. Em maio de 2024, o recorde de 1941 é tragicamente batido.

Segundo dados da defesa civil já se contam 41 mortes, 68 desaparecimentos e milhares de pessoas desabrigadas. Assim como em 1941, é certo que o sofrimento perdurará no tempo, mesmo após a água abaixar. No passado e no presente, as enchentes são reveladoras de problemas sociais como as práticas econômicas predatórias, o descaso com a regulação ambiental e a cegueira social – muitas vezes intencional – sobre distribuição desigual de sofrimentos nas cidades em eventos críticos como esses. Em tempos de emergência climática, que tipo de fotografia pretendemos emitir para a posterioridade?

Paulo Augusto Franco. ESPM-SP e USP

*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.

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