Por Michel Nicolau

Publicado originalmente em 09/02/2021.

São raros os dias em que não há mentiras circulando nas redes. Entre as mentiras contadas por bolsonaristas, me chama atenção como algumas são aleatórias. Qual a relação entre as mentiras contra o sistema eleitoral e a defesa da cloroquina? Qual a relação entre Bill Gates e chineses ou islâmicos? Ernesto Araújo dá a dica.

Em entrevista recente na qual defende os xingamentos de Bolsonaro à imprensa por conta da compra de leite condensado, o ministro afirma que a “imprensa tenta ser o narrador do jogo” de modo “deletério, mentiroso, falso”. Araújo sempre repete que a ordem mundial deve ser entendida como uma narrativa imposta por instituições dominadas por burocratas cujas mentes seriam colonizadas pelo marxismo cultural. É isso que produziria o que ele chama de “climatismo”, “globalismo” e a histeria do “comunavírus”.

Tais ideologias seriam produzidas por instituições transnacionais que teriam reverberado no Brasil através da imprensa, da universidade, do sistema eleitoral e de parte da ciência (a parte que de fato faz ciência). Entre outras coisas, essas instituições (chamadas de globalistas) teriam minado a condição do governo em representar o verdadeiro espírito dos povos que, no caso dos ocidentais, seria cristão e conservador. Dessa forma, não importa o que se diga, o importante é se contrapor à condição dessas instituições gerarem a confiança de que aquilo que dizem é verdade. É provável que se a OMS tivesse receitado a cloroquina, o remédio seria acusado de fazer parte de algum plano de Bill Gates, ou algo assim.

A mentira é, dessa forma, não apenas uma disputa pela verdade em si, mas uma forma de governo voltada a destruir as instituições legitimadas social e historicamente como fonte daquilo que entendemos como verdade. Uma vez destruídas, outras devem surgir no lugar para controlar as narrativas e, assim, o debate público. Da Polônia ao Brasil, dos trumpistas aos bolsonaristas, a extrema-direita esfrega suas mãos.

Michel Nicolau. Professor do Departamento de Sociologia (IFCH/Unicamp).

*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.

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