Por João Paulo Ayub

Publicado originalmente em 20/02/2021

Graciliano Ramos é um escritor que não receou alcançar o mais sórdido da natureza humana, justificando a metáfora do cão aplicada ao poeta pelo também escritor Elias Canetti: refere-se ao papel daquele que deve estar atrelado ao seu tempo como um cão, de modo servil, movido por uma “devassidão inexplicável”, que “mete o focinho úmido em tudo” sem deixar nada de fora. Graciliano é incansável em seu esforço de fazer falar aqueles que não têm a competência mínima das palavras: seja as criaturas de Vidas Secas, nas quais se misturam num mesmo contexto de desnutrição física e intelectual o homem e o animal; ou o menino de inocência suspeita, retratado nas memórias de Infância, culpado pela sua existência mesquinha e obrigado a escrever garranchos sob a palmatória, puxões de orelha de professores embrutecidos e gritos do pai.

A fortuna crítica reunida em torno do romance Angústia é quase unânime na queixa contra a insistência do autor em voltar-se para coisas desagradáveis. Soma-se a isso o sentimento de que a literatura de Graciliano estava contaminada por um irremediável negativismo cujo resultado seria uma visão da vida predestinada ao sofrimento. Nelson Sodré, ao escrever sobre este livro no momento em que acabava de ser publicado, anotou que o universo criado por Graciliano se caracteriza pela presença de uma “atmosfera densa e pesada”. Assim ele registra a impressão deixada pelos personagensdo livro: “Miserável legião de vencidos, os homens atravessam o cenário, ombros caídos, cabeças curvadas, uns idiotas, outros alcoolizados, vítimas de um peso enorme que os sufoca e que os acabrunha. Essa pintura cruel do marasmo e do desalento chega a nos impressionar e a nos deprimir.”

Enfim, Graciliano é uma testemunha privilegiada que fez da escrita um modo de sobrevivência diante das mazelas do seu tempo.

João Paulo Ayub. Psicanalista e Dr. em Ciências Sociais pela Unicamp. Autor do livro “Introdução à análise do poder de M. Foucault”

*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.

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