Por Juliana Farias

Publicado originalmente em 09/08/2021

#AbreAspas | Não é de hoje que luto e violações de direitos caminham lado a lado no Brasil. Mas, certamente, a marca de mais de 560 mil mortes decorrentes da pandemia de Covid-19 atualiza essa conexão – não apenas porque reconfigura as (im)possibilidades de velório e sepultamento, mas porque multiplica o número de famílias que, acertadamente, responsabilizam o Estado brasileiro por suas perdas. Como se revestido por uma blindagem “anti-humanidade”, o chefe do poder executivo federal segue impermeável ao senso de responsabilização em relação às engrenagens de morte em funcionamento no país.

Quando as lentes através das quais se enxerga o mundo são genocidas, o binarismo bélico que atualiza os duplos eu/outro; aliado/inimigo produz uma espécie de fusão entre eu-aliado que praticamente aloca como outro-inimigo tudo e todos. Sem partido, sem base política, sem aprovação nas pesquisas de opinião, sem legitimidade no cenário político internacional, o presidente do Brasil enxerga inimigos mesmo naqueles corpos mais semelhantes a ele: homens brancos cisgênero heterossexuais casados e com filhos, aqueles considerados os “pais de família”. Basta esses “homens de bem”, tantas vezes exultados pelo presidente, recusarem (ainda que em parte) o projeto de violação de direitos que segue em curso no país, para serem vistos como inimigos. E, sendo inimigo, não importa se é um “igual”: a perda da sua vida não é pranteável.

Quando no dia 02/08, o presidente se referiu ao ex-prefeito de São Paulo como “o outro que morreu”, era esse outro-inimigo que estava sendo explicitado. Nada foi cobrado ou reivindicado do chefe do executivo a respeito dessa morte para que seu posicionamento viesse a público. Se as declarações lgbtfóbicas, racistas, misóginas e capacitistas do presidente possuem alvos delimitados, seu escárnio não.

Foto: Orlando Brito

Juliana Farias (@fariasjuliana). Antropóloga, autora do livro “Governo de mortes” (Papeis Selvagens, 2020)

*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.

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