Por Felipe Magaldi
Publicado originalmente em 26/05/2022
#AbreAspas | A psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) teve sua vida interrompida quando, às vésperas do Estado Novo, foi presa por conta de suas atividades políticas no Partido Comunista Brasileiro, no Rio de Janeiro. Mesmo não sendo uma líder da agrupação, o simples fato de participar das reuniões e possuir livros marxistas foi suficiente para que passasse 18 meses no Presídio Frei Caneca. Lá, não chegou a ser torturada, mas viu a tortura de perto. Depois de liberta, passou sete anos na clandestinidade até ser definitivamente anistiada e poder retornar ao serviço público, em 1944.
De volta ao hospital psiquiátrico, antecipou com sua prática a intuição de muitos pensadores das ciências sociais: o manicômio – como o cárcere, em que ela própria estivera confinada – não reforma os sujeitos. Antes, os sujeita sob as mais diversas formas de violência. O eletrochoque e a lobotomia foram algumas das técnicas de tratamento agressivas que ela se recusou a aplicar. Escolhendo o caminho da terapêutica ocupacional, desenvolveu um método sistemático de tratamento psiquiátrico através de atividades de expressão plástica.
A notícia do veto da inclusão do nome da psiquiatra no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro, não deveria surpreender ninguém, afinal, trata-se de figuras totalmente antagônicas, para além do espectro político. De um lado, o apologista da tortura; do outro, alguém que reconheceu a tortura e enveredou para o caminho da cura. De um lado, o negacionista da ciência; do outro, alguém que tentou refinar a ciência para torná-la mais humana. De um lado, um macho crepuscular representante da elite branca e de outro, uma mulher nordestina, única a se formar em sua turma na Faculdade de Medicina, na Bahia. Mais que uma simples injustiça, o que está em jogo, como sempre, são as políticas da vida e da morte. E talvez, mais que uma heroína cravada em uma memória nacional, Nise da Silveira mereceria ser lida e conhecida.
Felipe Magaldi. Doutor em Antropologia Social (@ppgasmn), pós-doutorando @unifespoficial e colaborador @cmv.ufrj
*Este post não representa necessariamente a posição da ANPOCS.